sábado, 12 de outubro de 2013

O Fantasma e a Confiança



Copos e latas jogados nos canteiros não eram vestígios tão significativos quanto os jovens suburbanos bêbados que se espalhavam no gramado, dividindo o quadrilátero da praça com os metaleiros também bêbados. Guitarras poderosas tinham sacudido a praça horas antes em um show aberto ao público, que tinha comparecido em massa. Naquele momento, contudo, um vento forte finalmente varria as folhas e os corpos, como se uma grande operação de limpeza alísia tivesse sido contratada pela produção.

Ali estavam vários desses seres noturnos da fauna urbana, seres que transitam pela cidade madrugadas afora, geralmente espalhados, mas que com prazer se concentram em praças em eventos gratuitos. Entre eles um casal de namorados, estranhamente sóbrio e alheio aos resultados que o tornado musical havia deixado. Pareciam felizes de estarem sentados no duro cimento do banco, cercados por banheiros móveis, moradores de rua, jovens embriagados e algum lixo.

Conversavam, dando a impressão que as conversas entre eles ainda não tinham chegado naquele estágio onde estava tudo dito. Talvez essa aura de frescor, de novidade, é que tenha chamado a atenção do homem que se aproximou do banco. A mulher cautelosamente puxou a bolsa que tinha ao seu lado, colocando-a no colo. O gesto, no entanto, foi interpretado como um convite e ele sentou-se no lugar onde antes estava a bolsa, muito próximo dela. Ele tinha nas mãos uma caixa de cigarro amassada, mas não fumava. Na verdade, tinha tirado o papel prateado da caixa e o segurava com um cuidado desnecessário.

- Casal, será que eu posso mostrar uma arte para vocês?, perguntou com lentidão na fala, enquanto manuseava o papel.

 Ela ficou um pouco apreensiva, mas sentiu-se segura pela presença do namorado, cuja atitude era mais curiosa que assisada. O visitante era magro, mas não era franzino e via-se claramente que estava sob efeito de algum barbitúrico, embora não fosse fácil precisar qual tipo. Estava acompanhado apenas do cheiro característico de noites dormidas na rua, entretanto sua barba não estava muito crescida. Suas pupilas boiavam imensas nos olhos verdes, notou a mulher. Ele começou a dobrar o papel que tinha nas mãos, tão devagar quanto fazia todo o resto: falava, respirava e olhava vagarosamente.

Enquanto dobrava, rasgava e voltava a dobrar o papel, conversava. De vez em quando, lembrava-se de sua mochila que estava a alguns metros do banco. Nesses momentos, seu susto em câmera lenta produzia um efeito raro. Parava o que estivesse dizendo e fazendo e olhava para trás, na direção da mochila. Depois, acalmava-se percebendo que ele continuava no mesmo lugar, próxima a seus conhecidos, onde a havia deixado, e então voltava para a dobradura e o casal.

Fez perguntas aos dois e momentaneamente pareceu incomodado com a velocidade das respostas da namorada. "Ela é muito rápida", comentou com o namorado mansamente, o que causou risadas entre o casal. As dele eram espontâneas, já ela riu-se culpada da gafe, sentindo vergonha de seu estado mental tão díspar da madrugada e do vento insanos. Intimidada, tranquilizou-se quando percebeu que a conversa era, apesar de tudo, inteligente e agradável.

O namorado perguntou-lhe nome, ao que ele respondeu "*** Bezerra, mas pode me chamar de Fantasma" e riram todos com a genuína surpresa dela. Várias risadas interrompiam a conversa meio sem rumo e Fantasma repetia que sua mãe sempre dizia que "um dia sem rir é um dia perdido", mas nenhum deles parecia conhecer a famosa frase de Chaplin. Enquanto a dobradura avançava vagarosamente, a conversa seguia caminhos excêntricos, pois a cada resposta, Fantasma mudava a direção do jogo.

Ele contou que sua família era conhecida porque um antepassado, um tal de João Bezerra, tinha caçado e matado Lampião. Não contou essa parte com orgulho, mas com tristeza. Filosofou sobre a valentia e a morte, sobre a distância e a proximidade. Suas histórias dominavam a noite e apesar dos risos que acompanhavam os diálogos, os três estavam cobertos por uma fina camada de poeira, uma poeira humana, de milhões de existências unidas e desunidas, de vais e vens, de abros e fechos.

Disse também que seu avô tinha um jumento e que esse jumento se chamava Confiança. Confiança era um bom animal, mas um dia seu avô montou-lhe com menos gentileza e  Confiança jogou o velho dono no chão, matando-o. Nesta hora, Fantasma ria e olhava para o vazio, para o vento enlouquecido que tentava levantar a saia da namorada e que fazia as coisas flutuarem ao redor daquele banco de praça. A maneira como ele ria dessa anedota levantava dúvidas se era uma lembrança ou uma invenção. Seja o que fosse, era um poema épico do Homem e a Confiança.

Seu origami podia ficar pronto a qualquer hora, mas Fantasma não queria deixar. Pediu para ser convidado para o casamento dos namorados, lançou pensamentos contrastantes e em momento algum pediu qualquer coisa que não fosse a atenção do casal. Riam e se assombravam com a descoberta mútua até que os pingos grossos começassem a atrapalhar. Uma ventania súbita levantou toda aquela ecologia da madrugada, fazendo seus integrantes correrem para abrigar-se ou irem finalmente para as tocas onde dormiam.

Assustado com a rapidez da mudança, Fantasma finalmente percebeu que aquele momento suspenso no tempo tinha acabado. Praguejou contra a chuva, mas não teve tempo de se revoltar, pois os namorados despediram-se como bandoleiros em fuga, correndo para o carro como se os pingos d'água pudesse realmente lhes fazer mal, deixando para trás um Fantasma confuso com o alvoroço e magoado pela intempestiva conclusão.

No caminho para casa, a mulher, ainda surpresa com o encontro e tocada pela poesia prenhe naquele mundo de existência frágil e provisória de um banco de praça, se lembrou de uma música que ela cantava tanto de criança, mas que somente naquele momento havia feito sentido.


"Ah! Como eu tenho me enganado!
Como tenho me matado
Por ter demais confiado
Nas evidências do amor

Como tenho andado certo
Como tenho andado errado
Por seu carinho inseguro
Por meu caminho deserto

Como tenho me encontrado
Como tenho descoberto
A sombra leve da morte
Passando sempre por perto
E o sentimento mais breve
Rola no ar e descreve

A eterna cicatriz
Mais uma vez
Mais de uma vez
Quase que fui feliz

A barra do amor é que ele é meio ermo
A barra da morte é que ela não tem meio-termo"