sexta-feira, 12 de julho de 2013

Calvino

"Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores. Existe um momento na vida dos imperadores que se segue ao orgulho pela imensa amplitude dos seus territórios que conquistamos, à melancolia e ao alívio de saber que em breve desistiremos de conhecê-los e compreendê-los, uma sensação de vazio que surge ao calar da noite com o odor dos elefantes após a chuva e das cinzas de sândalo que se resfriam nos braseiros, uma vertigem que faz estremecer os rios e as montanhas historiadas nos fulvos dorsos dos planisférios, enrolando um depois do outro os despachos que anunciam o aniquilamento dos últimos exércitos inimigos de derrota em derrota, e abrindo o lacre dos sinetes de reis dos quais nunca se ouviu falar e que imploram a proteção das nossas armadas avançadas em troca de impostos anuis de metais preciosos, peles curtidas e cascos de tartarugas: é o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguiu discernir; através das muralhas e das formas destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins".


Introdução de "As Cidades Invisíveis", Italo Calvino.





O que mais me em Calvino é a natureza lúdica de sua obra e sua imensa vontade de transformar todo e qualquer texto em uma brincadeira, criando jogos de palavras, de ideias, jogos linguísticos e literários, intertextuais e, os mais interessantes para mim, os gramaticais, principalmente quando eles florescem de sua maravilhosa capacidade de formular parágrafos gigantes, perfeitamente inteligíveis e quase intermináveis, desses que são um tour de force de ideias versus fôlego, fazendo o leitor ao mesmo tempo divagar no tempo e no espaço sem notar que não se fez a pausa ou que houve o fim da ideia pois foram substituídas pelo fluxo encadeado de observações e pensamentos, e correr os olhos pelas linhas do texto dispersas no papel, como se fossem as margens de uma estrada que se viaja mansa e continuadamente, prestando atenção às árvores da direita e o pequeno lago da esquerda, onde uma ave acaba de levantar voo tendo em seu bico um diminuto peixe e ambos vão subindo, subindo, até alcançarem as nuvens dispostas no céu pintado por um artista caprichoso e excêntrico, que usou todo seu saber, todo seu talento para nos impressionar, não com uma arte histriônica, mas com sua maravilhosa habilidade em nos enganar, de hipnotizar a atenção do alerta e do distraído, conduzido-nos por fim a uma deliciosa sensação de volta ao mundo em um parágrafo, de uma vida inteira em poucas linhas.

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