quinta-feira, 15 de agosto de 2013
Teófilo e o Dragão
Certa vez, um garoto chamado Tufik (se pronuncia Tufi), por força do destino e das guerras no mundo, empreendeu uma viagem de vários dias para atravessar o oceano, em uma viagem que colocou sua vida em risco e foram seus pais que o mandaram. O garoto garoto tinha treze anos de idade e vivia com sua família no Líbano. Quando os pais de Tufik se decidiram a mandá-lo para longe, não lhe foi dada a escolha de permanecer. Não porque não fosse amado, mas porque eles se viram sem opções, sem poder oferecer o que todos os pais desejam para os filhos: a promessa de um futuro.
Eles procuraram por um navio de carga que sairia de sua terra (um trecho da Síria que depois viria a ser o Líbano) em direção ao Brasil e nesse navio confiaram Tufik à proteção de Deus. Anos antes, já haviam mandado uma filha e agora era a vez do filho varão. Sabiam que o mandavam para um país em quase tudo diferente do seu, de língua desconhecida e sem ninguém para receber o garoto. Entretanto, sabiam também que muitos compatriotas já haviam emigrando para esse mesmo país e que Tufik não estaria de todo desamparado. Ele poderia procurar pela irmã, de quem já não tinham o paradeiro, ou se juntar aos compatriotas, que certamente o iriam acolher. O importante era que o mandariam para um país cristão, católico e sem guerras ou perseguições.
Esta história aconteceu lá pelos idos de 1900. O Líbano daquele tempo era um território maravilhoso e de riquíssima cultura. Era tão belo e interessante que, após a criação oficial do país, os europeus costumavam chamá-lo de "Suíça do Oriente" e a capital, Beirute, apelidaram de "Paris do Oriente". Estes títulos não eram merecidos, pois nem Suíça nem Paris podem se comparar aos seus sete mil anos de história e o caldeirão cultural que se formou a partir de tantas civilizações que já não se pode ter certeza de seu número.
Líbano e Síria foram um dia a terra dos Fenícios, povo de matemática avançada, que inventou o alfabeto que veio a ser o sistema que nós usamos hoje. O alfabeto foi chegar aos gregos, e posteriormente aos romanos, porque os fenícios levavam sua cultura onde fossem, já que exímios navegantes e comerciantes por milênios. Também os amoritas, fenícios-cananeus, arameus, hititas, egípcios, babilônicos e tantos outros habitaram a região. Quando conquistada por Alexandre o Grande, passou a pertencer à "Civilização Helenística" e séculos depois foi incorporada ao Império Romano, como a Província da Síria. Foi em seu território, em Antióquia, que o cristianismo se iniciou e se disseminou para o mundo. Durante séculos, o Império Romano Oriental ou Bizantino manteve a unidade e paz na região, mas com a sua queda, foi a vez dos árabes conquistarem a província e a língua árabe se tornou dominante e oficial. A partir do século XVI a Síria foi integrada ao Império Otomano e por muito tempo se manteve próspera.
A partir do século XIX, conflitos religiosos assolaram a Síria e em junho de 1860 uma série de massacres entre cristãos maronitas e muçulmanos culminaram com a intervenção de tropas francesas e a divisão do território sírio entre as comunidades religiosas. Os otomanos criaram então o Pequeno Líbano, território criado para proteger a população cristã maronita. Com o fim da Primeira Grande Guerra, caiu o Império Otomano e as tropas francesas e britânicas ocuparam o território sírio, dividindo-o entre si. O Líbano foi colocado sob o mandato francês em 1922 e a República Libanesa foi criada em 1926, fruto de um acordo entre os muçulmanos sunitas e os cristãos maronitas.
Foi assim que o Líbano se formou como um país que fala árabe, de maioria cristã, com missas rezadas em língua siríaca, e cuja cultura remonta aos primórdios da idade do bronze. A Igreja Cristã Maronita não é ortodoxa, está subordinada à Cúria Latina, mas tem ritos diversos, que mistura tradições do catolicismo romano e da Igreja Ortodoxa. Apesar do Líbano ter sido criado para servir de refúgio para os maronitas da Síria, a perseguição religiosa por parte dos muçulmanos foi tamanha que hoje menos de quarenta por cento dos libaneses são cristãos.
No auge das perseguições contra os maronitas, entre 1880 e 1900, calcula-se que chegaram ao Brasil cerca de 5.400 libaneses e sírios. Diferentemente de outros imigrantes, como europeus e japoneses, os libaneses e os sírios não vieram para trabalhar nas fazendas e lavouras. Como o comércio faz parte de cultura há milênios, nada mais natural para aqueles imigrantes que seguirem o mesmo rumo no Brasil.
Será que o cristãoTufik subiu ao navio imaginando se o comércio no Brasil também seria seu futuro?Despedir-se do pai e da mãe foi difícil, mas tudo na vida do rapaz tinha sido difícil e mais que se entristecer com a despedida, ele precisava se instalar sem que ninguém o visse. Precisava ficar escondido não somente porque era clandestino, mas porque morreria se fosse descoberto. O navio era constantemente inspecionado pelos perseguidores muçulmanos. Eles tinham longas lanças e espadas que usavam para trespassar os lugares que não podiam acessar, garantindo que ninguém escapasse.
O pequeno Tufik se escondeu embaixo de lonas, dentro de caixas e tonéis de madeira e quase foi descoberto pelos guardas. Ele via as espadas entrando e passando tão próximo de seu corpo que não podia respirar. Ele ficava muito quieto, rezando enquanto os guardas desembainhavam suas espadas e estocavam todos os vãos do navio.
Nesse momento crucial de sua vida, sozinho, clandestino, podendo perder a vida a qualquer momento, Tufik se apegou à única coisa que podia salvá-lo: sua fé. Orava e pedia a Deus que o protegesse. Mas era preciso mais que rezar. Era preciso oferecer algo, era preciso demonstrar a aliança, o pacto que une o Homem ao seu Deus. Tufik fez uma promessa a São Jorge que se salvasse chegaria ao Brasil construiria uma capela dedicada a ele.
A devoção a São Jorge no Líbano é muito forte, tanto que o santo guerreiro é o padroeiro de Beirute (como também da Inglaterra, da Etiópia, da Geórgia, de Londres, Moscou, Barcelona, Gênova, de Portugal e tantos outros lugares). Jorge talvez seja o santo mais popular ao redor do mundo. No Brasil, por causa de nosso sincretismo afro-europeu, sua figura é ainda mais forte, pois é identificado com Ogum, o orixá ferreiro. A história de Jorge, o mártir da Capadócia, é cercada de lendas e pouco se sabe de real sobre ele. O que se sabe com certeza é que era cidadão, soldado e tribuno romano e que foi torturado e morto por sua fé em 303 DC.
Gergious era filho de um soldado romano que nasceu na Capadócia (atual Turquia) e ainda criança mudou-se com a mãe para a Palestina. Sua mãe possuía bens e se esmerou em sua educação. Como seu pai tinha sido soldado do império, ele também seguiu a carreira das armas e chegou a ser promovido a capitão do exército romano. Tendo se sobressaído no comando militar, o Imperador lhe conferiu o título de conde da Capadócia. Aos 23 anos passou a residir na corte imperial, exercendo a função de Tribuno Militar, um cargo importante no império. Quando sua mãe faleceu, ele decidiu se mudar para a corte do Imperador Diocleciano.
Acontece que em 302, Diocleciano decretara a prisão de todo soldado romano que professasse o cristianismo. Jorge, que apesar de cidadão romano tinha crescido no território onde o cristianismo era dominante e sendo ele mesmo cristão, ficou inconformado com a decisão. Consta que ele foi ao encontro do imperador para objetar do decreto imperial e se declarou cristão. Não querendo perder um de seus melhores tribunos, o Imperador tentou dissuadi-lo oferecendo-lhe terras, dinheiro e escravos. Como Jorge mantinha-se irredutível, Diocleciano decidiu torturá-lo.
Seu martírio ganhou notoriedade e muitos romanos tomaram as dores do jovem soldado, inclusive a mulher do imperador, que se converteu ao cristianismo por essa razão. Em 23 de abril de 303, Jorge foi degolado e esse é o dia em que se celebra São Jorge. Foi somente na idade média que surgiram as lendas sobre o salvamento da donzela e a luta contra o dragão. O que elas simbolizavam na cultura medieval européia era a luta da fé contra a idolatria (representada pelo dragão).
Para um cristão maronita, São Jorge não é um soldado que mora na lua e mata o dragão, mas o mártir, o tribuno romano que ousou defender sua fé contra a perseguição religiosa. E certamente esta é a força de Jorge e todos os mártires, a fé diante o perigo, a entrega a Deus e a resistência frente a qualquer obstáculo.
Tufik sobreviveu a todas as lanças e espadas e, como o Jorge das lendas, seu corpo parecia fechado a elas. Seus perseguidores não o viram e não o atingiram. Quando finalmente chegou ao Brasil, recebeu um novo nome, pois seu nome seria difícil para os brasileiros. Foi renomeado Teófilo um nome bem escolhido, já que Teófilo significa "amor a deus". Seu sobrenome, Abdo, é de origem árabe e significa "o servo de Deus". Já Taufik ou Tufik em árabe significa "boa ventura".
Certamente meu avô teve boa ventura na vida e certamente era um homem que amava Deus. No Brasil, ele pode se estabelecer, casou-se, teve onze filhos e viveu uma vida de paz. Eu não o conheci e isso é uma grande tristeza para mim. Tenho poucas informações sobre ele, mas todos que o conheceram falam com respeito e admiração sobre ele. Quando penso em meu avô, uma figura quase mítica, tem um certo quê de heroísmo, não só por essa história que contei aqui, mas pelas várias outras que me contam, que o retratam como um homem muito interessante, que ensinava seus filhos com parábolas, rígido e misericordioso, que viajava e comerciava, que não saía de casa sem seu canivete.
É um mistério que eu nunca poderei desvendar, posso apenas imaginar o homem que ele era e tentar buscar sua presença na história dos inúmeros imigrantes que vieram para essa terra fugindo de perseguições e que mantiveram sua fé, algo que também é um grande mistério para mim. Porque, ao contrário de meu avô, eu não partilho da fé em Deus, mas creio que compartilho da sua vontade de viver e de crescer em paz, em respeito aos meus companheiros de viagem.
O que sei com certeza é que ele não encontrou sua irmã logo que chegou ao Brasil. Muitos anos se passaram até que eles finalmente se reencontraram, mas ele fez sua própria família aqui. Meu pai, o filho caçula, diz que ele tinha uma linda imagem de São Jorge tatuada no braço e que realmente construiu uma capela para o santo em Belo Horizonte. Ele foi fiel à sua promessa e também à promessa feita por seus pais de construir uma nova vida. Não sei se é possível, mas gostaria de encontrá-lo um dia e fazer as milhares de perguntas que ninguém aqui pode me responder.
sábado, 10 de agosto de 2013
Playground
Crescer é algo muito perturbador. É uma sucessão de instantes onde, bem à sua frente, o parquinho de brincar vai se transformando no mundo e o que passa pelo escorregador não é você, mas o tempo.
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
What It Feels Like For A Girl
Dois dois lados da alameda, os chimpanzés estão gritando para mim. Eles gesticulam profusamente e vocalizam ensandecidos. Seus saltos e guinchos chamam a atenção de alguns babuínos que estão mais distantes, deitados à sombra. Eles também vão se aproximando andando aquele andar símio desarranjado pelos rabos impudentes e projetando as presas em minha direção.
Apenas caminho, tentando não aparentar medo ou a irritação que é bombeada para cada centímetro do meu corpo. Fico tentando descobrir o que fiz que para perturbá-los e descubro que foram os meus braços gordos, que hoje apresento desnudos.
Os gritos não diminuem, apenas acompanham a direção que tomo. Um macho se aproxima mais que todos e estende a mão para agarrar meus cabelos, mas desvio ligeira. Não posso correr nem demonstrar medo. É preciso demonstrar força ou ser atacada.
Há um lago perto e preciso decidir se é um bom lugar para me refugiar. Provavelmente não é, pois a água só pode me proteger por um tempo, depois é preciso voltar para o mesmo caminho. As fêmeas e as crias não estão à vista, devem estar nas árvores mais distantes, escondidas ou escondendo-se.
Sinto dedos secos agarrando minha panturrilha. Grito com o susto e isso parece excitá-los ainda mais. Tento correr, mas me lembro que jamais alcançaria qualquer resultado correndo. Mesmo que eu corresse como uma gazela, ainda seria apanhada pela intransponível diferença numérica. Consigo livrar minha perna e caminho mais rápido que pretendia.
Alguns machos mais jovens avançam à minha frente, correndo e guinchando horrivelmente. Há uns dez metros eles cruzam a alameda, bloqueando a passagem. Não há o quê fazer, mas não consigo parar e tento correr.
De repente, vários deles estão ao meu lado, cercando todo o perímetro ao meu redor. Nessa hora, tenho medo de que meu pior pesadelo se realize. Temo que, como todos dizem, eu goste da zaragata, que as imundas patas simiescas em meu corpo me agradem.
Mas isso não acontece. Continuo à beira da náusea, confusa e enojada pelos hálitos das bocas podres. Estão bem próximos seus olhos injetados de sangue e testosterona. Patas viscosas, sujas de comida e excrementos, me tocam, me ferem.
Sou impotente contra a horda. Não há o que ser feito. Ajoelhada no chão, seguro a cabeça nas pernas e me encolho até me transformar em uma rocha. Me defendo na inércia: aguento os puxões, as unhadas, as ejaculações, a gritaria. Espero passar. No olho do furacão, me sinto segura. Podem fazer o que quiserem, já não me amedrontam. Estou em outro lugar.
Não há o que lhes perdoar, são monstros horríveis. Não deve haver condescendência. Não fazemos parte sequer da mesma espécie. Não são meus braços gordos nus, são apenas esses desprezíveis macacos que atravessam o caminho.
Apenas caminho, tentando não aparentar medo ou a irritação que é bombeada para cada centímetro do meu corpo. Fico tentando descobrir o que fiz que para perturbá-los e descubro que foram os meus braços gordos, que hoje apresento desnudos.
Os gritos não diminuem, apenas acompanham a direção que tomo. Um macho se aproxima mais que todos e estende a mão para agarrar meus cabelos, mas desvio ligeira. Não posso correr nem demonstrar medo. É preciso demonstrar força ou ser atacada.
Há um lago perto e preciso decidir se é um bom lugar para me refugiar. Provavelmente não é, pois a água só pode me proteger por um tempo, depois é preciso voltar para o mesmo caminho. As fêmeas e as crias não estão à vista, devem estar nas árvores mais distantes, escondidas ou escondendo-se.
Sinto dedos secos agarrando minha panturrilha. Grito com o susto e isso parece excitá-los ainda mais. Tento correr, mas me lembro que jamais alcançaria qualquer resultado correndo. Mesmo que eu corresse como uma gazela, ainda seria apanhada pela intransponível diferença numérica. Consigo livrar minha perna e caminho mais rápido que pretendia.
Alguns machos mais jovens avançam à minha frente, correndo e guinchando horrivelmente. Há uns dez metros eles cruzam a alameda, bloqueando a passagem. Não há o quê fazer, mas não consigo parar e tento correr.
De repente, vários deles estão ao meu lado, cercando todo o perímetro ao meu redor. Nessa hora, tenho medo de que meu pior pesadelo se realize. Temo que, como todos dizem, eu goste da zaragata, que as imundas patas simiescas em meu corpo me agradem.
Mas isso não acontece. Continuo à beira da náusea, confusa e enojada pelos hálitos das bocas podres. Estão bem próximos seus olhos injetados de sangue e testosterona. Patas viscosas, sujas de comida e excrementos, me tocam, me ferem.
Sou impotente contra a horda. Não há o que ser feito. Ajoelhada no chão, seguro a cabeça nas pernas e me encolho até me transformar em uma rocha. Me defendo na inércia: aguento os puxões, as unhadas, as ejaculações, a gritaria. Espero passar. No olho do furacão, me sinto segura. Podem fazer o que quiserem, já não me amedrontam. Estou em outro lugar.
Não há o que lhes perdoar, são monstros horríveis. Não deve haver condescendência. Não fazemos parte sequer da mesma espécie. Não são meus braços gordos nus, são apenas esses desprezíveis macacos que atravessam o caminho.
sábado, 3 de agosto de 2013
As babas do diabo
(...)
"Entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olho e dedos seguros. Não se trata de estar tocaiando a mentira como qualquer repórter, e agarrar a estúpida silhueta do personagem que sai do número 10 de Downing Street*, mas, seja como for, quando se anda com a câmera tem-se o dever de estar atento, de não perder este brusco e delicioso rebote de um raio de sol numa velha pedra, ou a carreira, tranças ao vento, de uma menininha que volta com um pão ou uma garrafa de leite".
Julio Cortázar no conto 'As babas do diabo'.
*Residência do Primeiro Ministro Britânico
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