Um amigo fez a seguinte pergunta no facebook:
"Sempre me esqueço: qual é mesmo a princesa da Disney que resolve seus próprios problemas sem tentar achar um namorado?"
É engraçado que existem pouquíssimos temas sobre os quais eu não esteja propensa a fazer piada, e esse é um deles. Aconteceu também a pouco tempo atrás, num encontro com amigos queridos.
Não me lembro o porquê mas o assunto recaiu sobre cantadas de peão de obra e acho que, pelo menos no princípio, eles se divertiram quando contei do quiprocó que tive com um pedreiro. Nessa época ia trabalhar de ônibus e durante três ou quatro dias tive que aturar frases desrespeitosas dessa criatura que trabalhava literalmente na porta de casa. Foram três ou quatro dias que perdi o direito de sair feliz de casa. Até que perdi a paciência com a situação e disse em alto e bom tom para ele parar com aquilo e me respeitar. A criatura pediu desculpas? Não, piorou a situação me afrontando com não me lembro mais quais ternas palavras... Isso me deixou tão fora de mim que perguntei se ele não tinha mãe ou irmãs ou filhas e se ele já havia pensado que isso poderia acontecer com elas. Sem efeito. Por fim, vendo que ele ficava agressivo, pedi para falar com o responsável pela obra. Foi preciso outro trabalhador (que assistia à cena) intervir e me falar que o responsável estava almoçando e blá blá blá... ele conseguiu acalmar os ânimos e eu, que simplesmente abomino discussões, fui embora mais um dia chateada pro trabalho.
Contudo, algum efeito deve ter causado porque nunca mais tive que ouvir nada do imbecil e é quase certo que nunca mais vi sua cara.
Obviamente, os amigos homens estavam achando muita graça na história toda, mas me assustei com a expressão de surpresa de uma amiga, algo como, "mas ele é peão!". Então ser trabalhador da construção civil te dá o direito de ser desrespeitoso e sair-se livre disso? Ela achava que eu estava perdendo o meu tempo brigando com ele.
Talvez, mas a sensação de ser molestada era insuportável. Como aconteceu uma vez comigo no ônibus lotado e alguém me bolinou com toda vontade. Acho que nunca tive tanta raiva na minha vida. Dei um grito para o motorista parar o ônibus e desci imediatamente tão abalada que só consegui chorar de raiva.
Posso até ver a cabecinha de alguns pensando "ela ficou nervosinha porque era peão, se fosse um gostosão com dinheiro, ela estaria achando ótimo". Pois deixa eu te dizer, poderia ser o Gianecchini passando numa Ferrari, que se ele gritasse algo ofensivo, continuaria sendo ofensivo. Quer me chamar de gostosa, bundão, delícia, eu agrado, mas só se você tiver sido escolhido para a ceia do senhor (poucos são). Se não chegou nesse ponto, não me conhece, me trate com civilidade.
Já ouvi de uma mulher tão enganada sobre si mesma dizer que quando está se sentindo feia, passa por uma obra pra melhorar a moral. Eu sei que é brincadeira, mas, como disse, não tem graça pra mim. Os peões e os homens que mexem com mulheres na rua não estão fazendo nenhum elogio nem estão deliciados com a beldade das garotas que passam. Eles estão repetindo um rito cultural (não creio que seja biológico, mas acho que nenhum primata faz isso e certamente não acho evolucional) de afirmação de sua masculinidade macho-latina. Se passar um cabrito de salto alto ou vaca peituda de sutiã de renda, vai ouvir: "Gata, me chama de calcinha fio dental e deixa eu apertar sua bunda"...
http://www.facebook.com/CantadasdiPedreiro?fref=ts
Algumas são muito engraçadas até, mas na piada, não quando um cara fala isso na rua pra mim. E como argumentou minha amiga que morou na Austrália, após uma repetição de cantadas de um peão: "meu filho, isso já fez efeito alguma vez, algum dos dias que você falou isso pra mim, eu te dei alguma coisa? Nunca funcionou, porque você continua tentando?". Porque ele nada mais quer que ser um gibão, gritando em cima da árvore até que uma das fêmea se irrite a ponto de calar a boca dele com sexo...
Mas essa lorotada toda não é pra falar mal dos peões e outras mulas que praticam essa requintada arte de ofensa. É pra ficar exasperada com a mulherada que acha isso normal e, macacos me mordam, bacana!
É aí que entram as princesas (!). Sei que a pergunta do meu amigo não pretendia gerar nenhuma comoção desse nível, mas é aquela história... vai mexer com quem tá quieto. O que acho da pergunta é que ela está propondo uma reflexão interessante, só que talvez esteja mal formulada.
As princesas da Disney - estou considerando as clássicas: Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida - não estão procurando namorados para resolver seus problemas, uma delas só descobre o tal Príncipe Encantado depois de cem anos dormindo. Outra também só é desencantada por um beijo de um total desconhecido. Somente a Cinderela escapa pois intenções de conhecer o Príncipe.
No geral, os problemas das princesas são causados por outras mulheres (mais velhas e invejosas da beleza e juventude) e pela ausência ou displicência de figuras paternas ou irmãos. São verdadeiras coitadas. E a questão que me incomodou é que se elas estivessem 'procurando namorado' para resolver os problemas, como a Cinderela, estaria tudo melhor. Porque essa é uma atitude, ao menos. O que meu amigo levanta é que resolver seus problemas achando um homem não seria muito digno ou louvável.
Pois eu acho Cinderela a mais bem colocada dessas três, porque ela é a única a procurar ajuda, a ter uma postura ativa. E daí que seja através de um príncipe? As duas outras princesas são tão reféns de sua própria sina que elas precisam ser encontradas por um homem que literalmente as desperte. Esses homens são a única coisa capaz de lhes dar vida. Elas não são sujeitos em suas próprias estórias, são objetos, de inveja, de adoração, de desejo. Mas a elas nada disso é permitido. Nem agir nem desejar.
É bom lembrar que essas estórias não são da Disney, mas dos contos de fadas que vem sendo contados desde o Romantismo, pelo menos. Tempos em que a proteção masculina era altamente desejada e cuja visão patriarcal da feminilidade que vem se repetindo desde então, principalmente através da cultura. Foi primeiramente nos contos de fadas que aprendemos esse modelo de mulher objeto, que se prestam somente ao olhar e o desejo masculino, sem que possuam nada mais per si.
O problema dessas princesas não é procurar homem, é NÃO procurar nada. É serem vítimas de suas estórias até que um homem que as deseje, quando então elas passam a existir (mas a estória acaba aí, não é?).
Encontrar o Príncipe Encantado talvez não seja a ideia mais vanguardista hoje, 50 anos pós-feminismo, mais ainda sim é melhor que o arquétipo anterior. E por agora temos as novas princesas, Fiona, Mulan, Tiana, que ainda encontram o Príncipe Encantado e vivem felizes, mas mesmo repetindo esse padrão, elas invertem a atitude. Elas resolvem seus próprios problemas, em alguns casos, os seus e os do príncipe também.
É uma esperança para que as mulheres se percebam de outras formas e para que entendam que, mesmo se quiserem procurar um príncipe, não precisam aturar cantadas e frases de mal gosto de sapos verruguentos na rua.
Ps: webcams no próximo post...
"Sempre me esqueço: qual é mesmo a princesa da Disney que resolve seus próprios problemas sem tentar achar um namorado?"
É engraçado que existem pouquíssimos temas sobre os quais eu não esteja propensa a fazer piada, e esse é um deles. Aconteceu também a pouco tempo atrás, num encontro com amigos queridos.
Não me lembro o porquê mas o assunto recaiu sobre cantadas de peão de obra e acho que, pelo menos no princípio, eles se divertiram quando contei do quiprocó que tive com um pedreiro. Nessa época ia trabalhar de ônibus e durante três ou quatro dias tive que aturar frases desrespeitosas dessa criatura que trabalhava literalmente na porta de casa. Foram três ou quatro dias que perdi o direito de sair feliz de casa. Até que perdi a paciência com a situação e disse em alto e bom tom para ele parar com aquilo e me respeitar. A criatura pediu desculpas? Não, piorou a situação me afrontando com não me lembro mais quais ternas palavras... Isso me deixou tão fora de mim que perguntei se ele não tinha mãe ou irmãs ou filhas e se ele já havia pensado que isso poderia acontecer com elas. Sem efeito. Por fim, vendo que ele ficava agressivo, pedi para falar com o responsável pela obra. Foi preciso outro trabalhador (que assistia à cena) intervir e me falar que o responsável estava almoçando e blá blá blá... ele conseguiu acalmar os ânimos e eu, que simplesmente abomino discussões, fui embora mais um dia chateada pro trabalho.
Contudo, algum efeito deve ter causado porque nunca mais tive que ouvir nada do imbecil e é quase certo que nunca mais vi sua cara.
Obviamente, os amigos homens estavam achando muita graça na história toda, mas me assustei com a expressão de surpresa de uma amiga, algo como, "mas ele é peão!". Então ser trabalhador da construção civil te dá o direito de ser desrespeitoso e sair-se livre disso? Ela achava que eu estava perdendo o meu tempo brigando com ele.
Talvez, mas a sensação de ser molestada era insuportável. Como aconteceu uma vez comigo no ônibus lotado e alguém me bolinou com toda vontade. Acho que nunca tive tanta raiva na minha vida. Dei um grito para o motorista parar o ônibus e desci imediatamente tão abalada que só consegui chorar de raiva.
Posso até ver a cabecinha de alguns pensando "ela ficou nervosinha porque era peão, se fosse um gostosão com dinheiro, ela estaria achando ótimo". Pois deixa eu te dizer, poderia ser o Gianecchini passando numa Ferrari, que se ele gritasse algo ofensivo, continuaria sendo ofensivo. Quer me chamar de gostosa, bundão, delícia, eu agrado, mas só se você tiver sido escolhido para a ceia do senhor (poucos são). Se não chegou nesse ponto, não me conhece, me trate com civilidade.
Me senti melhor na conversa quando outra amiga concordou plenamente comigo e me lembrou de algo que eu também vivi: a alegria de viver num país estrangeiro (ela na Austrália e eu na Inglaterra) e ter o direito de vestir qualquer coisa que deseja sem ter que ficar ouvindo coisas ridículas ou se sentindo um pedaço de carne.
Já ouvi de uma mulher tão enganada sobre si mesma dizer que quando está se sentindo feia, passa por uma obra pra melhorar a moral. Eu sei que é brincadeira, mas, como disse, não tem graça pra mim. Os peões e os homens que mexem com mulheres na rua não estão fazendo nenhum elogio nem estão deliciados com a beldade das garotas que passam. Eles estão repetindo um rito cultural (não creio que seja biológico, mas acho que nenhum primata faz isso e certamente não acho evolucional) de afirmação de sua masculinidade macho-latina. Se passar um cabrito de salto alto ou vaca peituda de sutiã de renda, vai ouvir: "Gata, me chama de calcinha fio dental e deixa eu apertar sua bunda"...
http://www.facebook.com/CantadasdiPedreiro?fref=ts
Algumas são muito engraçadas até, mas na piada, não quando um cara fala isso na rua pra mim. E como argumentou minha amiga que morou na Austrália, após uma repetição de cantadas de um peão: "meu filho, isso já fez efeito alguma vez, algum dos dias que você falou isso pra mim, eu te dei alguma coisa? Nunca funcionou, porque você continua tentando?". Porque ele nada mais quer que ser um gibão, gritando em cima da árvore até que uma das fêmea se irrite a ponto de calar a boca dele com sexo...
Mas essa lorotada toda não é pra falar mal dos peões e outras mulas que praticam essa requintada arte de ofensa. É pra ficar exasperada com a mulherada que acha isso normal e, macacos me mordam, bacana!
É aí que entram as princesas (!). Sei que a pergunta do meu amigo não pretendia gerar nenhuma comoção desse nível, mas é aquela história... vai mexer com quem tá quieto. O que acho da pergunta é que ela está propondo uma reflexão interessante, só que talvez esteja mal formulada.
As princesas da Disney - estou considerando as clássicas: Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida - não estão procurando namorados para resolver seus problemas, uma delas só descobre o tal Príncipe Encantado depois de cem anos dormindo. Outra também só é desencantada por um beijo de um total desconhecido. Somente a Cinderela escapa pois intenções de conhecer o Príncipe.
No geral, os problemas das princesas são causados por outras mulheres (mais velhas e invejosas da beleza e juventude) e pela ausência ou displicência de figuras paternas ou irmãos. São verdadeiras coitadas. E a questão que me incomodou é que se elas estivessem 'procurando namorado' para resolver os problemas, como a Cinderela, estaria tudo melhor. Porque essa é uma atitude, ao menos. O que meu amigo levanta é que resolver seus problemas achando um homem não seria muito digno ou louvável.
Pois eu acho Cinderela a mais bem colocada dessas três, porque ela é a única a procurar ajuda, a ter uma postura ativa. E daí que seja através de um príncipe? As duas outras princesas são tão reféns de sua própria sina que elas precisam ser encontradas por um homem que literalmente as desperte. Esses homens são a única coisa capaz de lhes dar vida. Elas não são sujeitos em suas próprias estórias, são objetos, de inveja, de adoração, de desejo. Mas a elas nada disso é permitido. Nem agir nem desejar.
É bom lembrar que essas estórias não são da Disney, mas dos contos de fadas que vem sendo contados desde o Romantismo, pelo menos. Tempos em que a proteção masculina era altamente desejada e cuja visão patriarcal da feminilidade que vem se repetindo desde então, principalmente através da cultura. Foi primeiramente nos contos de fadas que aprendemos esse modelo de mulher objeto, que se prestam somente ao olhar e o desejo masculino, sem que possuam nada mais per si.
O problema dessas princesas não é procurar homem, é NÃO procurar nada. É serem vítimas de suas estórias até que um homem que as deseje, quando então elas passam a existir (mas a estória acaba aí, não é?).
Encontrar o Príncipe Encantado talvez não seja a ideia mais vanguardista hoje, 50 anos pós-feminismo, mais ainda sim é melhor que o arquétipo anterior. E por agora temos as novas princesas, Fiona, Mulan, Tiana, que ainda encontram o Príncipe Encantado e vivem felizes, mas mesmo repetindo esse padrão, elas invertem a atitude. Elas resolvem seus próprios problemas, em alguns casos, os seus e os do príncipe também.
É uma esperança para que as mulheres se percebam de outras formas e para que entendam que, mesmo se quiserem procurar um príncipe, não precisam aturar cantadas e frases de mal gosto de sapos verruguentos na rua.
Ps: webcams no próximo post...
Me entristece pensar que algumas mulheres pensem tão pouco de si a ponto de considerar essas 'cantadas' elogios e não o que são de verdade: um profundo desrespeito para com outro ser humano. Um assédio. Uma violência. Uma invasão.
ResponderExcluirQuanto a realidade lá fora, é difícil traduzir a leveza de colocar o pé na rua sem ter que se preocupar em ser alvo desse tipo de situação. É algo que todas as mulheres deveriam experimentar um dia. E que, creio eu, homem algum jamais será capaz de compreender.