sábado, 12 de outubro de 2013

O Fantasma e a Confiança



Copos e latas jogados nos canteiros não eram vestígios tão significativos quanto os jovens suburbanos bêbados que se espalhavam no gramado, dividindo o quadrilátero da praça com os metaleiros também bêbados. Guitarras poderosas tinham sacudido a praça horas antes em um show aberto ao público, que tinha comparecido em massa. Naquele momento, contudo, um vento forte finalmente varria as folhas e os corpos, como se uma grande operação de limpeza alísia tivesse sido contratada pela produção.

Ali estavam vários desses seres noturnos da fauna urbana, seres que transitam pela cidade madrugadas afora, geralmente espalhados, mas que com prazer se concentram em praças em eventos gratuitos. Entre eles um casal de namorados, estranhamente sóbrio e alheio aos resultados que o tornado musical havia deixado. Pareciam felizes de estarem sentados no duro cimento do banco, cercados por banheiros móveis, moradores de rua, jovens embriagados e algum lixo.

Conversavam, dando a impressão que as conversas entre eles ainda não tinham chegado naquele estágio onde estava tudo dito. Talvez essa aura de frescor, de novidade, é que tenha chamado a atenção do homem que se aproximou do banco. A mulher cautelosamente puxou a bolsa que tinha ao seu lado, colocando-a no colo. O gesto, no entanto, foi interpretado como um convite e ele sentou-se no lugar onde antes estava a bolsa, muito próximo dela. Ele tinha nas mãos uma caixa de cigarro amassada, mas não fumava. Na verdade, tinha tirado o papel prateado da caixa e o segurava com um cuidado desnecessário.

- Casal, será que eu posso mostrar uma arte para vocês?, perguntou com lentidão na fala, enquanto manuseava o papel.

 Ela ficou um pouco apreensiva, mas sentiu-se segura pela presença do namorado, cuja atitude era mais curiosa que assisada. O visitante era magro, mas não era franzino e via-se claramente que estava sob efeito de algum barbitúrico, embora não fosse fácil precisar qual tipo. Estava acompanhado apenas do cheiro característico de noites dormidas na rua, entretanto sua barba não estava muito crescida. Suas pupilas boiavam imensas nos olhos verdes, notou a mulher. Ele começou a dobrar o papel que tinha nas mãos, tão devagar quanto fazia todo o resto: falava, respirava e olhava vagarosamente.

Enquanto dobrava, rasgava e voltava a dobrar o papel, conversava. De vez em quando, lembrava-se de sua mochila que estava a alguns metros do banco. Nesses momentos, seu susto em câmera lenta produzia um efeito raro. Parava o que estivesse dizendo e fazendo e olhava para trás, na direção da mochila. Depois, acalmava-se percebendo que ele continuava no mesmo lugar, próxima a seus conhecidos, onde a havia deixado, e então voltava para a dobradura e o casal.

Fez perguntas aos dois e momentaneamente pareceu incomodado com a velocidade das respostas da namorada. "Ela é muito rápida", comentou com o namorado mansamente, o que causou risadas entre o casal. As dele eram espontâneas, já ela riu-se culpada da gafe, sentindo vergonha de seu estado mental tão díspar da madrugada e do vento insanos. Intimidada, tranquilizou-se quando percebeu que a conversa era, apesar de tudo, inteligente e agradável.

O namorado perguntou-lhe nome, ao que ele respondeu "*** Bezerra, mas pode me chamar de Fantasma" e riram todos com a genuína surpresa dela. Várias risadas interrompiam a conversa meio sem rumo e Fantasma repetia que sua mãe sempre dizia que "um dia sem rir é um dia perdido", mas nenhum deles parecia conhecer a famosa frase de Chaplin. Enquanto a dobradura avançava vagarosamente, a conversa seguia caminhos excêntricos, pois a cada resposta, Fantasma mudava a direção do jogo.

Ele contou que sua família era conhecida porque um antepassado, um tal de João Bezerra, tinha caçado e matado Lampião. Não contou essa parte com orgulho, mas com tristeza. Filosofou sobre a valentia e a morte, sobre a distância e a proximidade. Suas histórias dominavam a noite e apesar dos risos que acompanhavam os diálogos, os três estavam cobertos por uma fina camada de poeira, uma poeira humana, de milhões de existências unidas e desunidas, de vais e vens, de abros e fechos.

Disse também que seu avô tinha um jumento e que esse jumento se chamava Confiança. Confiança era um bom animal, mas um dia seu avô montou-lhe com menos gentileza e  Confiança jogou o velho dono no chão, matando-o. Nesta hora, Fantasma ria e olhava para o vazio, para o vento enlouquecido que tentava levantar a saia da namorada e que fazia as coisas flutuarem ao redor daquele banco de praça. A maneira como ele ria dessa anedota levantava dúvidas se era uma lembrança ou uma invenção. Seja o que fosse, era um poema épico do Homem e a Confiança.

Seu origami podia ficar pronto a qualquer hora, mas Fantasma não queria deixar. Pediu para ser convidado para o casamento dos namorados, lançou pensamentos contrastantes e em momento algum pediu qualquer coisa que não fosse a atenção do casal. Riam e se assombravam com a descoberta mútua até que os pingos grossos começassem a atrapalhar. Uma ventania súbita levantou toda aquela ecologia da madrugada, fazendo seus integrantes correrem para abrigar-se ou irem finalmente para as tocas onde dormiam.

Assustado com a rapidez da mudança, Fantasma finalmente percebeu que aquele momento suspenso no tempo tinha acabado. Praguejou contra a chuva, mas não teve tempo de se revoltar, pois os namorados despediram-se como bandoleiros em fuga, correndo para o carro como se os pingos d'água pudesse realmente lhes fazer mal, deixando para trás um Fantasma confuso com o alvoroço e magoado pela intempestiva conclusão.

No caminho para casa, a mulher, ainda surpresa com o encontro e tocada pela poesia prenhe naquele mundo de existência frágil e provisória de um banco de praça, se lembrou de uma música que ela cantava tanto de criança, mas que somente naquele momento havia feito sentido.


"Ah! Como eu tenho me enganado!
Como tenho me matado
Por ter demais confiado
Nas evidências do amor

Como tenho andado certo
Como tenho andado errado
Por seu carinho inseguro
Por meu caminho deserto

Como tenho me encontrado
Como tenho descoberto
A sombra leve da morte
Passando sempre por perto
E o sentimento mais breve
Rola no ar e descreve

A eterna cicatriz
Mais uma vez
Mais de uma vez
Quase que fui feliz

A barra do amor é que ele é meio ermo
A barra da morte é que ela não tem meio-termo"


domingo, 22 de setembro de 2013

A Seta e o Alvo




Eu falo de amor à vida,
Você de medo da morte.
Eu falo da força do acaso
E você de azar ou sorte.

Eu ando num labirinto
E você numa estrada em linha reta.
Te chamo pra festa,
Mas você só quer atingir sua meta.
Sua meta é a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu olho pro infinito
E você de óculos escuros.
Eu digo: "Te amo!"
E você só acredita quando eu juro.

Eu lanço minha alma no espaço,
Você pisa os pés na terra.
Eu experimento o futuro
E você só lamenta não ser o que era.
E o que era?
Era a seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Eu grito por liberdade,
Você deixa a porta se fechar.
Eu quero saber a verdade
E você se preocupa em não se machucar.

Eu corro todos os riscos,
Você diz que não tem mais vontade.
Eu me ofereço inteiro
E você se satisfaz com metade.
É a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa não te espera!

Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?

Sempre a meta de uma seta no alvo,
Mas o alvo, na certa, não te espera.

Então me diz qual é a graça
De já saber o fim da estrada,
Quando se parte rumo ao nada?


Paulinho Moska

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Teófilo e o Dragão








Certa vez, um garoto chamado Tufik (se pronuncia Tufi), por força do destino e das guerras no mundo, empreendeu uma viagem de vários dias para atravessar o oceano, em uma viagem que  colocou sua vida em risco e foram seus pais que o mandaram. O garoto garoto tinha treze anos de idade e vivia com sua família no Líbano. Quando os pais de Tufik se decidiram a mandá-lo para longe, não lhe foi dada a escolha de permanecer. Não porque não fosse amado, mas porque eles se viram sem opções, sem poder oferecer o que todos os pais desejam para os filhos: a promessa de um futuro.



Eles procuraram por um navio de carga que sairia de sua terra (um trecho da Síria que depois viria a ser o Líbano) em direção ao Brasil e nesse navio confiaram Tufik à proteção de Deus. Anos antes, já haviam mandado uma filha e agora era a vez do filho varão. Sabiam que o mandavam para um país em quase tudo diferente do seu, de língua desconhecida e sem ninguém para receber o garoto. Entretanto, sabiam também que muitos compatriotas já haviam emigrando para esse mesmo país e que Tufik não estaria de todo desamparado. Ele poderia procurar pela irmã, de quem já não tinham o paradeiro, ou se juntar aos compatriotas, que certamente o iriam acolher. O importante era que o mandariam para um país cristão, católico e sem guerras ou perseguições.



Esta história aconteceu lá pelos idos de 1900. O Líbano daquele tempo era um território maravilhoso e de riquíssima cultura. Era tão belo e interessante que, após a criação oficial do país, os europeus costumavam chamá-lo de "Suíça do Oriente" e a capital, Beirute, apelidaram de "Paris do Oriente". Estes títulos não eram merecidos, pois nem Suíça nem Paris podem se comparar aos seus sete mil anos de história e o caldeirão cultural que se formou a partir de tantas civilizações que já não se pode ter certeza de seu número.



Líbano e Síria foram um dia a terra dos Fenícios, povo de matemática avançada, que inventou o alfabeto que veio a ser o sistema que nós usamos hoje. O alfabeto foi chegar aos gregos, e posteriormente aos romanos, porque os fenícios levavam sua cultura onde fossem, já que exímios navegantes e comerciantes por milênios. Também os amoritas, fenícios-cananeus, arameus, hititas, egípcios, babilônicos e tantos outros habitaram a região. Quando conquistada por Alexandre o Grande, passou a pertencer à "Civilização Helenística" e séculos depois foi incorporada ao Império Romano, como a Província da Síria. Foi em seu território, em Antióquia, que o cristianismo se iniciou e se disseminou para o mundo. Durante séculos, o Império Romano Oriental ou Bizantino manteve a unidade e paz na região, mas com a sua queda, foi a vez dos árabes conquistarem a província e a língua árabe se tornou dominante e oficial. A partir do século XVI a Síria foi integrada ao Império Otomano e por muito tempo se manteve próspera.



A partir do século XIX, conflitos religiosos assolaram a Síria e em junho de 1860 uma série de massacres entre cristãos maronitas e muçulmanos culminaram com a intervenção de tropas francesas e a divisão do território sírio entre as comunidades religiosas. Os otomanos criaram então o Pequeno Líbano, território criado para proteger a população cristã maronita. Com o fim da Primeira Grande Guerra, caiu o Império Otomano e as tropas francesas e britânicas ocuparam o território sírio, dividindo-o entre si. O Líbano foi colocado sob o mandato francês em 1922 e a República Libanesa foi criada em 1926, fruto de um acordo entre os muçulmanos sunitas e os cristãos maronitas.



Foi assim que o Líbano se formou como um país que fala árabe, de maioria cristã,  com missas rezadas em língua siríaca, e cuja cultura remonta aos primórdios da idade do bronze. A Igreja Cristã Maronita não é ortodoxa, está subordinada à Cúria Latina, mas tem ritos diversos, que mistura tradições do catolicismo romano e da Igreja Ortodoxa. Apesar do Líbano ter sido criado para servir de refúgio para os maronitas da Síria, a perseguição religiosa por parte dos muçulmanos foi tamanha que hoje menos de quarenta por cento dos libaneses são cristãos.



No auge das perseguições contra os maronitas, entre 1880 e 1900, calcula-se que chegaram ao Brasil cerca de 5.400 libaneses e sírios. Diferentemente de outros imigrantes, como europeus e japoneses, os libaneses e os sírios não vieram para trabalhar nas fazendas e lavouras. Como o comércio faz parte de cultura há milênios, nada mais natural para aqueles imigrantes que seguirem o mesmo rumo no Brasil.



Será que o cristãoTufik subiu ao navio imaginando se o comércio no Brasil também seria seu futuro?Despedir-se do pai e da mãe foi difícil, mas tudo na vida do rapaz tinha sido difícil e mais que se entristecer com a despedida, ele precisava se instalar sem que ninguém o visse. Precisava ficar escondido não somente porque era clandestino, mas porque morreria se fosse descoberto. O navio era constantemente inspecionado pelos perseguidores muçulmanos. Eles tinham longas lanças e espadas que usavam para trespassar os lugares que não podiam acessar, garantindo que ninguém escapasse.



O pequeno Tufik se escondeu embaixo de lonas, dentro de caixas e tonéis de madeira e quase foi descoberto pelos guardas. Ele via as espadas entrando e passando tão próximo de seu corpo que não podia respirar. Ele ficava muito quieto, rezando enquanto os guardas desembainhavam suas espadas e estocavam todos os vãos do navio.



Nesse momento crucial de sua vida, sozinho, clandestino, podendo perder a vida a qualquer momento, Tufik se apegou à única coisa que podia salvá-lo: sua fé. Orava e pedia a Deus que o protegesse. Mas era preciso mais que rezar. Era preciso oferecer algo, era preciso demonstrar a aliança, o pacto que une o Homem ao seu Deus. Tufik fez uma promessa a São Jorge que se salvasse chegaria ao Brasil construiria uma capela dedicada a ele.



A devoção a São Jorge no Líbano é muito forte, tanto que o santo guerreiro é o padroeiro de Beirute (como também da Inglaterra, da Etiópia, da Geórgia, de Londres, Moscou, Barcelona, Gênova, de Portugal e tantos outros lugares). Jorge talvez seja o santo mais popular ao redor do mundo. No Brasil, por causa de nosso sincretismo afro-europeu, sua figura é ainda mais forte, pois é identificado com Ogum, o orixá ferreiro. A história de Jorge, o mártir da Capadócia, é cercada de lendas e pouco se sabe de real sobre ele. O que se sabe com certeza é que era cidadão, soldado e tribuno romano e que foi torturado e morto por sua fé em 303 DC.


Gergious era filho de um soldado romano que nasceu na Capadócia (atual Turquia) e ainda criança mudou-se com a mãe para a Palestina. Sua mãe possuía bens e se esmerou em sua educação. Como seu pai tinha sido soldado do império, ele também seguiu a carreira das armas e chegou a ser promovido a capitão do exército romano. Tendo se sobressaído no comando militar, o Imperador lhe conferiu o título de conde da Capadócia. Aos 23 anos passou a residir na corte imperial, exercendo a função de Tribuno Militar, um cargo importante no império. Quando sua mãe faleceu, ele decidiu se mudar para a corte do Imperador Diocleciano.



Acontece que em 302, Diocleciano decretara a prisão de todo soldado romano que professasse o cristianismo. Jorge, que apesar de cidadão romano tinha crescido no território onde o cristianismo era dominante e sendo ele mesmo cristão, ficou inconformado com a decisão. Consta que ele foi ao encontro do imperador para objetar do decreto imperial e se declarou cristão. Não querendo perder um de seus melhores tribunos, o Imperador tentou dissuadi-lo oferecendo-lhe terras, dinheiro e escravos. Como Jorge mantinha-se irredutível, Diocleciano decidiu torturá-lo.



Seu martírio ganhou notoriedade e muitos romanos tomaram as dores do jovem soldado, inclusive a mulher do imperador, que se converteu ao cristianismo por essa razão. Em 23 de abril de 303, Jorge foi degolado e esse é o dia em que se celebra São Jorge. Foi somente na idade média que surgiram as lendas sobre o salvamento da donzela e a luta contra o dragão. O que elas simbolizavam na cultura medieval européia era a luta da fé contra a idolatria (representada pelo dragão).



Para um cristão maronita, São Jorge não é um soldado que mora na lua e mata o dragão, mas o mártir, o tribuno romano que ousou defender sua fé contra a perseguição religiosa. E certamente esta é a força de Jorge e todos os mártires, a fé diante o perigo, a entrega a Deus e a resistência frente a qualquer obstáculo.



Tufik sobreviveu a todas as lanças e espadas e, como o Jorge das lendas, seu corpo parecia fechado a elas. Seus perseguidores não o viram e não o atingiram. Quando finalmente chegou ao Brasil, recebeu um novo nome, pois seu nome seria difícil para os brasileiros. Foi renomeado Teófilo um nome bem escolhido, já que Teófilo significa "amor a deus". Seu sobrenome, Abdo, é de origem árabe e significa "o servo de Deus". Já Taufik ou Tufik em árabe significa "boa ventura".



Certamente meu avô teve boa ventura na vida e certamente era um homem que amava Deus. No Brasil, ele pode se estabelecer, casou-se, teve onze filhos e viveu uma vida de paz. Eu não o conheci e isso é uma grande tristeza para mim. Tenho poucas informações sobre ele, mas todos que o conheceram falam com respeito e admiração sobre ele. Quando penso em meu avô, uma figura quase mítica, tem um certo quê de heroísmo, não só por essa história que contei aqui, mas pelas várias outras que me contam, que o retratam como um homem muito interessante, que ensinava seus filhos com parábolas, rígido e misericordioso, que viajava e comerciava, que não saía de casa sem seu canivete.



É um mistério que eu nunca poderei desvendar, posso apenas imaginar o homem que ele era e tentar buscar sua presença na história dos inúmeros imigrantes que vieram para essa terra fugindo de perseguições e que mantiveram sua fé, algo que também é um grande mistério para mim. Porque, ao contrário de meu avô, eu não partilho da fé em Deus, mas creio que compartilho da sua vontade de viver e de crescer em paz, em respeito aos meus companheiros de viagem.



O que sei com certeza é que ele não encontrou sua irmã logo que chegou ao Brasil. Muitos anos se passaram até que eles finalmente se reencontraram, mas ele fez sua própria família aqui. Meu pai, o filho caçula, diz que ele tinha uma linda imagem de São Jorge tatuada no braço e que realmente construiu uma capela para o santo em Belo Horizonte. Ele foi fiel à sua promessa e também à promessa feita por seus pais de construir uma nova vida. Não sei se é possível, mas gostaria de encontrá-lo um dia e fazer as milhares de perguntas que ninguém aqui pode me responder.





sábado, 10 de agosto de 2013

Playground








Crescer é algo muito perturbador. É uma sucessão de instantes onde, bem à sua frente, o parquinho de brincar vai se transformando no mundo e o que passa pelo escorregador não é você, mas o tempo.



segunda-feira, 5 de agosto de 2013

What It Feels Like For A Girl

Dois dois lados da alameda, os chimpanzés estão gritando para mim. Eles gesticulam profusamente e vocalizam ensandecidos. Seus saltos e guinchos chamam a atenção de alguns babuínos que estão mais distantes, deitados à sombra. Eles também vão se aproximando andando aquele andar símio desarranjado pelos rabos impudentes e projetando as presas em minha direção.

Apenas caminho, tentando não aparentar medo ou a irritação que é bombeada para cada centímetro do meu corpo. Fico tentando descobrir o que fiz que para perturbá-los e descubro que foram os meus braços gordos, que hoje apresento desnudos.

Os gritos não diminuem, apenas acompanham a direção que tomo. Um macho se aproxima mais que todos e estende a mão para agarrar meus cabelos, mas desvio ligeira. Não posso correr nem demonstrar medo. É preciso demonstrar força ou ser atacada.

Há um lago perto e preciso decidir se é um bom lugar para me refugiar. Provavelmente não é, pois a água só pode me proteger por um tempo, depois é preciso voltar para o mesmo caminho. As fêmeas e as crias não estão à vista, devem estar nas árvores mais distantes, escondidas ou escondendo-se.

Sinto dedos secos agarrando minha panturrilha. Grito com o susto e isso parece excitá-los ainda mais. Tento correr, mas me lembro que jamais alcançaria qualquer resultado correndo. Mesmo que eu corresse como uma gazela, ainda seria apanhada pela intransponível diferença numérica. Consigo livrar minha perna e caminho mais rápido que pretendia.

Alguns machos mais jovens avançam à minha frente, correndo e guinchando horrivelmente. Há uns dez metros eles cruzam a alameda, bloqueando a passagem. Não há o quê fazer, mas não consigo parar e tento correr.

De repente, vários deles estão ao meu lado, cercando todo o perímetro ao meu redor. Nessa hora, tenho medo de que meu pior pesadelo se realize. Temo que, como todos dizem, eu goste da zaragata, que as imundas patas simiescas em meu corpo me agradem.

Mas isso não acontece. Continuo à beira da náusea, confusa e enojada pelos hálitos das bocas podres. Estão bem próximos seus olhos injetados de sangue e testosterona. Patas viscosas, sujas de comida e excrementos, me tocam, me ferem.

Sou impotente contra a horda. Não há o que ser feito. Ajoelhada no chão, seguro a cabeça nas pernas e me encolho até me transformar em uma rocha. Me defendo na inércia: aguento os puxões, as unhadas, as ejaculações, a gritaria. Espero passar. No olho do furacão, me sinto segura. Podem fazer o que quiserem, já não me amedrontam. Estou em outro lugar.

Não há o que lhes perdoar, são monstros horríveis. Não deve haver condescendência. Não fazemos parte sequer da mesma espécie. Não são meus braços gordos nus, são apenas esses desprezíveis macacos que atravessam o caminho.



sábado, 3 de agosto de 2013

As babas do diabo





(...)

"Entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olho e dedos seguros. Não se trata de estar tocaiando a mentira como qualquer repórter, e agarrar a estúpida silhueta do personagem que sai do número 10 de Downing Street*, mas, seja como for, quando se anda com a câmera tem-se o dever de estar atento, de não perder este brusco e delicioso rebote de um raio de sol numa velha pedra, ou a carreira, tranças ao vento, de uma menininha que volta com um pão ou uma garrafa de leite".


Julio Cortázar no conto 'As babas do diabo'.



*Residência do Primeiro Ministro Britânico




quarta-feira, 31 de julho de 2013

Hands Off








Descobri que poucas coisas podem ser mais nonsense do que esse vídeo:

https://www.youtube.com/watch?v=4jhCJdk4MH0


São 167 japoneses tocando em Theremins construídos em Matrioskas. Ou seja, nem explicando fica menos estranho...

Não sabe o que é o Theremin?

http://www.bbc.co.uk/news/entertainment-arts-14396967

O Pato Fu (sempre eles!!) fez uma homenagem em 'EU':

http://www.youtube.com/watch?v=kPrWzsrpHis


Quer saber mais sobre Theremins no Japão?

http://japanese.lingualift.com/blog/theremin-in-japan/










terça-feira, 30 de julho de 2013

Vetusta Vivenda






Por faltar quem lhe tomasse conta, o mato e as bananeiras, os pássaros e os micos encarregaram-se da direção.

O gado há muito se foi. Os cavalos e cães também.

Ainda presos no vento, os risos da criança loura, que um dia caíra da janela machucando a fronte na pedra pontiaguda, volteiam entre os pés de fruta.

Hoje, o musgo grassa nos poliedros rústicos que levam ao alpendre, os morcegos morcegam pelos beirais e são os únicos a atrever-se no interior.

Entregue à si própria, flutua no tempo e não compartilha as memórias dos anos em que a Bígama lá vivia nem a vibração descuidada dos reisados que enchiam de música a propriedade.

Também não reconta as vezes em que os guinchos dos suínos sacrificados comprimiam o ar com pavor e morte, ou mesmo quando o mancebo Luiz quase se foi Desta Para Uma Melhor no incêndio do paiol, tudo porque, boêmio, dormira embriagado.

Agora ela floresce isolada, distante da ciência dos Outros, e desabrocham novos veios que raiam o azul esmaecido das paredes.

Mas não pense que está abandonada, ocorre que não é mais uma casa, mas uma Caravela singrando o verde líquido do Oceano do Tempo, enquanto a tripulação ligeira chireia levando a vela solta.


A baravento estavam Eles, a sotavento estou Eu.









domingo, 21 de julho de 2013

Avião Aeroporto


Avião Aeroporto



Pelo avesso
vamo pro fundo, pro fundo
o arame farpado na cabeça
vento, cata-vento, vulcão
pâncreas, fígado, coração
suspeito
de tudo que passava por lá e vinha pra mim
da cabeça passava pro coração
ia e voltava fundo
um pouco do produto bruto que jorra da sua pessoa presa
acesa
sinto muito que você não pensa nisso
surpresa sua
mas pode ser também surpresa minha,
surpresa sua
por que o corpo humano tem a resistência perfeita
se bate de leve dói, bate de com força mata
se bate de leve dói, bate de com força mata
se bate de leve dói, bate de com força mata
se bate de leve dói, bate de com força mata
se bate de leve dói, bate de com força mata
bate de com força mata

Karina Buhr



*foto web

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Que mais podia um velho fazer, nos idos de 1916, a não ser pegar pneumonia, deixar tudo para os filhos e virar fotografia?

o que passou passou?

Paulo Leminski

Antigamente, se morria.
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria,
e todo mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dias de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado
O escândalo era de praxe,
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.
Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que tem que morrer,
Tinha coisas que tem que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
deixar tudo para os filhos
e virar fotografia?
Ninguém vivia para sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Mas ninguém tem culpa.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Não tem o que reclamar.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.



terça-feira, 16 de julho de 2013

Para o Rique

Este bológuio é tão exclusivo que tem um único seguidor. Para ele vai esse poema do Leminski.


sete assuntos por segundo

Ut pictura, poesis
Horácio

    Para que serva a pintura 
a não ser quando apresenta
    precisamente a procura
daquilo que mais aparenta,
    quando ministra quarenta
enigmas vezes setenta?



    sossegue coração
ainda não é agora
    a confusão prossegue
sonhos a fora

    calma calma
logo mais a gente goza
    perto do osso
a carne é mais gostosa



    lá fora e no alto
o céu fazia
    todas as estrelas que podia

    na cozinha,
debaixo da lâmpada
    minha mãe escolhia
feijão e arroz
    andrômeda para cá
altair para lá
    sirius para cá
estrela dalva para lá






sábado, 13 de julho de 2013

Do privilégio de enxergar

É engraçado, mas desde pequena tinha umas manias esquisitas. Uma delas era achar que iria ficar cega de um dia pro outro. Comecei a fazer várias coisas no escuro, como comer, trocar de roupa, me locomover pela casa e tomar banho (o que faço até hoje) sem ligar uma lâmpada.

É possível que essa mania fosse influenciada por um casal de cegos que moravam perto da minha casa e que eram amigos de minha mãe, mas acho que não. Nem pelo fato de que aos sete anos tomei uma chinelada no olho. Estava engajada em uma atividade que sempre havia me proporcionado um prazer sádico e saudável: provocar cócegas na minha irmã. Não sei porque, mas ela nunca entendeu a graça da brincadeira, tanto que esperneava e se contorcia, mandando chutes para todos os lados. E, como sempre, reclamava para minha mãe. Naquela noite, após pelo menos umas três ameças, minha mãe perdeu a paciência e tirou as havaianas para me dar umas chineladas.

Para o azar dela e meu, as havaianas nunca foram muito fiéis à propaganda e a tira se soltou em pleno ato de punição, de modo que ao invés da merecida bronca, ganhei uma visita ao oftalmologista. Nada de grave se sucedeu mas, minha mãe passou uns dias me paparicando por se sentir culpada (recomendo às crianças com excesso de energia que aproveitem este momento, porque dura pouco).

Outra coisa que eu fazia era brincar usando um tampão no olho. Não lembro por qual razão fazia isso, mas minha mãe diz que eu de vez em quando brincava assim, vai ver que era vontade de ser pirata ou ver o mundo com um olho só... Acredito piamente porque tem até foto para provar.

Quando adulta esqueci essa história de ficar cega porque enxergava muitíssimo bem e frequentemente ia a oftalmologistas que garantiam a integridade de minha visão. No entanto, eu já devia saber que é quando descuidamos que a coisa acontece. Não é que alguns meses atrás quase fico meio cega?

Meu olho esquerdo deu erro e a retina descolou, igualzinha à tira da havaiana. Segundo minha médica, a causa é puramente idiota e pior, rara. Não tenho diabetes, não tive nenhum traumatismo nem tenho miopia, que são os fatores mais comuns do descolamento. De acordo com a médica, menos de 5% da população nasce assim como eu, com pequenos furinhos nas retinas, chamadas ruturas. 

Com a idade o gel que preenche o olho vai se liquefazendo e, ficando mais líquido, passa pelas tais ruturas, empurrando e descolando a retina e fazendo muita gente perder a vista e eu, a paciência. Passei por duas cirurgias e a terceira está por vir, mas ainda enxergo (um pouco pior) nesse olho.

Não satisfeita com isso, recentemente descobri que tenho propensão ao glaucoma pigmentar, que é pouco comum para mulheres da minha idade. Esse glaucoma é causado pelo entupimento dos canais de drenagem do olho por pigmentos que se soltam da íris. Quer mais ou tá de bom tamanho?

Com isso tudo, aprendi duas Lições de Vida. A primeira é que a Oftalmologia é uma especialidade muito engraçada. Os nossos olhos são cheios de coisas com nomes divertidos como humor vítreo, moscas volantes e filme lacrimal. E os exames? Retinografia, goniscopia, tonometria, campo de visão e uns quinze mais... Ser Oftalmologista parece coisa de Professor Pardal, eles têm um milhão de aparelhos, lentes, máquinas, instrumentos... se juntar tudo numa sala fica parecendo laboratório de filme de terror da década de 40. 

Outra lição bem aprendida é que eu devia ter prestado mais atenção aos exotismos da infância. Uma criança tão sábia quanto eu fui, e fiquei tão boba de adulta!

O pior não é não ver, é não enxergar!!


sexta-feira, 12 de julho de 2013

Calvino

"Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores. Existe um momento na vida dos imperadores que se segue ao orgulho pela imensa amplitude dos seus territórios que conquistamos, à melancolia e ao alívio de saber que em breve desistiremos de conhecê-los e compreendê-los, uma sensação de vazio que surge ao calar da noite com o odor dos elefantes após a chuva e das cinzas de sândalo que se resfriam nos braseiros, uma vertigem que faz estremecer os rios e as montanhas historiadas nos fulvos dorsos dos planisférios, enrolando um depois do outro os despachos que anunciam o aniquilamento dos últimos exércitos inimigos de derrota em derrota, e abrindo o lacre dos sinetes de reis dos quais nunca se ouviu falar e que imploram a proteção das nossas armadas avançadas em troca de impostos anuis de metais preciosos, peles curtidas e cascos de tartarugas: é o desesperado momento em que se descobre que este império, que nos parecia a soma de todas as maravilhas, é um esfacelo sem fim e sem forma, que a sua corrupção é gangrenosa demais para ser remediada pelo nosso cetro, que o triunfo sobre os soberanos adversários nos fez herdeiros de suas prolongadas ruínas. Somente nos relatórios de Marco Polo, Kublai Khan conseguiu discernir; através das muralhas e das formas destinadas a desmoronar, a filigrana de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins".


Introdução de "As Cidades Invisíveis", Italo Calvino.





O que mais me em Calvino é a natureza lúdica de sua obra e sua imensa vontade de transformar todo e qualquer texto em uma brincadeira, criando jogos de palavras, de ideias, jogos linguísticos e literários, intertextuais e, os mais interessantes para mim, os gramaticais, principalmente quando eles florescem de sua maravilhosa capacidade de formular parágrafos gigantes, perfeitamente inteligíveis e quase intermináveis, desses que são um tour de force de ideias versus fôlego, fazendo o leitor ao mesmo tempo divagar no tempo e no espaço sem notar que não se fez a pausa ou que houve o fim da ideia pois foram substituídas pelo fluxo encadeado de observações e pensamentos, e correr os olhos pelas linhas do texto dispersas no papel, como se fossem as margens de uma estrada que se viaja mansa e continuadamente, prestando atenção às árvores da direita e o pequeno lago da esquerda, onde uma ave acaba de levantar voo tendo em seu bico um diminuto peixe e ambos vão subindo, subindo, até alcançarem as nuvens dispostas no céu pintado por um artista caprichoso e excêntrico, que usou todo seu saber, todo seu talento para nos impressionar, não com uma arte histriônica, mas com sua maravilhosa habilidade em nos enganar, de hipnotizar a atenção do alerta e do distraído, conduzido-nos por fim a uma deliciosa sensação de volta ao mundo em um parágrafo, de uma vida inteira em poucas linhas.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Galinhas Chocas

À meia noite fez o silêncio que
nem os grilos ousavam perturbar.
Apenas umas galinhas-chocas
cacarejando "comprado, comprado!"

Mas ninguém lhes deu atenção.
O que é comprado não foi achado
O que é achado não foi vendido
O que é vendido não foi encontrado
Ainda.

No Achados e Perdidos
do comércio de almas,
vendem-se as belas
perdem-se as escuras
compra-se as puras
e as encontradas nunca são devolvidas











sábado, 29 de junho de 2013

Posfácio




Todo meu dinheiro se foi em bons livros e roupas vagabundas. 
Enquanto isso, enrugueço.
Enrugueço grata às roupas baratas e aos livros.

As rugas, mapas insuspeitos dos oceanos,
continentes e abismos que visitei em 
meus ótimos livros, vestida apenas de
um coração perguntador, permanecerão
até que o Capítulo Final seja lido;
quando para mim chegar o 'para sempre'. 



sexta-feira, 28 de junho de 2013

domingo, 23 de junho de 2013

VRS:NSMV:SMQL:IVB


A Luz Sagrada seja minha Espada
Não seja teu membro meu comandante
Vade retro, Gollum do Inferno
Nunca me aconselhes coisas vãs
É o egoísmo o que tu me ofereces
Bebe tu mesmo os teus venenos

O Cajado Sagrado seja meu Mestre
Não sejam tuas mãos meus guias
Vade retro, Vampiro das Trevas
Nunca me poluas a alma
É a eternidade solitária que me ofereces
Goze tu mesmo teus artifícios

A Dieta Sagrada seja meu Refúgio
Não sejam tuas palavras meu governo
Vade retro, Príncipe da Sedução
Nunca me possuas o corpo
É a boca fétida que tu me ofereces
Engole tu mesmo teus perdigotos


sábado, 22 de junho de 2013

Desabafo



Quer saber? Só tenho uma palavra para você

Concêntrico
Centrípeto
Indivisível
Incompartilhável
Ilha-ilhota
Id-ota

Pode escolher.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Poemando








Rimas
     Ricas
          Não
             Seriam
                   Se
                     Ricos
                          Fossem
                                Os Poetas




quarta-feira, 5 de junho de 2013

Difícil Amor



"As pessoas (com auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo, é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil (...). Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas preparação. (...) A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e unir-se a outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma oportunidade sublime  para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; (...) Quem observa com seriedade descobre que, assim como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não se reconheceu ainda nenhum esclarecimento, nenhuma solução, nem aceno, nem caminho. Para essas duas tarefas, que carregamos e transmitimos secretamente sem esclarecer, nunca se achará uma regra comum baseada em um acordo."
 Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta


terça-feira, 4 de junho de 2013

Las Conversations Imaginaires (la revanche)




  • A. "Eu não entendo muitos poemas... H., cê gosta de poesia?"
  • H. "Deus me livre e guarde de poesia!"

  • X. "Meu número é 333"
  • Y. "?"
  • X. "Meio besta"

  • D. "(...) você é uma pessoa sem personalidade!"
  • L. "Num tenho mesmo não... só me pedem CPF e RG"

  • F. "Como pode o peixe vivo viver fora da água fria?"
  • L. "Dançando break"









terça-feira, 28 de maio de 2013

Ganesha



Nasci na orla da morte, como você. Não há pureza, não há perfeição. O que há é criar e destruir.

Talvez por isso eu nunca sei o que quero, mas desconfio que não deveria saber o quê quero, deveria apenas querer. Mas como o saber?

Se eu quisesse o que quero, eu iria querer flutuar.

Também iria querer um elefante que dormisse comigo na caverna e que mudasse para o tamanho que eu pedisse. Ele serviria de montaria, travesseiro, cachorro, chuveiro e gangorra. Eu poderia amarrar sua tromba com o rabo e teria uma ótima mala. Juntos flutuaríamos até o mar, pousando na Ilha de Cragen, onde são feitas as conchas. O anão do serviço secreto crageneano tentaria nos expulsar, mas meu elefante o esmagaria como a uma aranha. Então tomaríamos de assalto a ilha e nomearia meu elefante "Lorde Haathi, Governador das Conchas e Moluscos Marinhos". Viveríamos de pepinos do mar, ovas de peixe espada e rocambole de lagosta e à noite fumaríamos algas secas em cachimbos de madrepérola. Haathi seria eterno para mim.

Iria também querer saber o que as coisas sentem quando eu as toco. O que se passa com as sementes enquanto estripo a abóbora. O que pensou a bolha de sabão que estourei, os sapatos que experimentei mas acabei não comprando. Teria remorsos a faca que me feriu? O muro chapiscado aprecia as minhas carícias? Será que o cobertor gosta de me envolver? O envelope de que eu o lamba? 

Só não iria querer ser direta, porque então eu seria uma seta, uma lança, quando de fato sou uma lagoa. Um lago cuja continência é ilusória e nenhum limite perenal.

Na orla da morte não deveria ser permitido o querer. O querer é gasolina de muitos, mas é gelo para mim. Congelada, entorpecida, incompleta, sigo sem saber o quê querer.

Haathi seria divã também.



terça-feira, 21 de maio de 2013

Spokama


Não basta ser sincero
ter caráter, ser honesto
Gotta work, like Kirk e o Vulcano
Oh meu Deus, quanta luta, quanta luta, quanto treino
Insistindo e brigando
quanta força, e doendo
Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus...

Ah, não seria mal, oh meu Deus
se eu fosse, é errado, eu sei
sustentado pelo mundo
A Etiópia é assim
Subaquistão é assim...

Il ne suffit pas d´être sincère
honête et avoir du caractère
Gotta work, like Kirk et il Vulcan
Ah mon dieu, que de lutte, que de lutte
d'entrainements, insistant, se battant
que de force, malfaisante
Ah mon dieu, ah mon dieu, ah mon dieu

Ah! Ça ne serait pas mal, ah mon dieu
Si j'étais, c'est faux, je sais
entretenue par le monde
L'Ethiopie c'est ainsi
Le Subaquistan c'est ainsi...

Spoc, Spoc, Spoc, Spoc
é que eu nasci pro trabalho
Spoc, Spoc, Spoc, Spoc
me arruma um trabalho
menos estranho...


Pato Fu - Spoc










































sexta-feira, 10 de maio de 2013

Princesas, webcams e peões de obra


Um amigo fez a seguinte pergunta no facebook: 
"Sempre me esqueço: qual é mesmo a princesa da Disney que resolve seus próprios problemas sem tentar achar um namorado?"

É engraçado que existem pouquíssimos temas sobre os quais eu não esteja propensa a fazer piada, e esse é um deles. Aconteceu também a pouco tempo atrás, num encontro com amigos queridos.

Não me lembro o porquê mas o assunto recaiu sobre cantadas de peão de obra e acho que, pelo menos no princípio, eles se divertiram  quando contei do quiprocó que tive com um pedreiro. Nessa época ia trabalhar de ônibus e durante três ou quatro dias tive que aturar frases desrespeitosas dessa criatura que trabalhava literalmente na porta de casa. Foram três ou quatro dias que perdi o direito de sair feliz de casa. Até que perdi a paciência com a situação e disse em alto e bom tom para ele parar com aquilo e me respeitar. A criatura pediu desculpas? Não, piorou a situação me afrontando com não me lembro mais quais ternas palavras... Isso me deixou tão fora de mim que perguntei se ele não tinha mãe ou irmãs ou filhas e se ele já havia pensado que isso poderia acontecer com elas. Sem efeito. Por fim, vendo que ele ficava agressivo, pedi para falar com o responsável pela obra. Foi preciso outro trabalhador (que assistia à cena) intervir e me falar que o responsável estava almoçando e blá blá blá... ele conseguiu acalmar os ânimos e eu, que simplesmente abomino discussões, fui embora mais um dia chateada pro trabalho.

Contudo, algum efeito deve ter causado porque nunca mais tive que ouvir nada do imbecil e é quase certo que nunca mais vi sua cara.

Obviamente, os amigos homens estavam achando muita graça na história toda, mas me assustei com a expressão de surpresa de uma amiga, algo como, "mas ele é peão!". Então ser trabalhador da construção civil te dá o direito de ser desrespeitoso e sair-se livre disso? Ela achava que eu estava perdendo o meu tempo brigando com ele.

Talvez, mas a sensação de ser molestada era insuportável. Como aconteceu uma vez comigo no ônibus lotado e alguém me bolinou com toda vontade. Acho que nunca tive tanta raiva na minha vida. Dei um grito para o motorista parar o ônibus e desci imediatamente tão abalada que só consegui chorar de raiva.


Posso até ver a cabecinha de alguns pensando "ela ficou nervosinha porque era peão, se fosse um gostosão com dinheiro, ela estaria achando ótimo". Pois deixa eu te dizer, poderia ser o Gianecchini passando numa Ferrari, que se ele gritasse algo ofensivo, continuaria sendo ofensivo. Quer me chamar de gostosa, bundão, delícia, eu agrado, mas só se você tiver sido escolhido para a ceia do senhor (poucos são). Se não chegou nesse ponto, não me conhece, me trate com civilidade.

Me senti melhor na conversa quando outra amiga  concordou plenamente comigo e me lembrou de algo que eu também vivi: a alegria de viver num país estrangeiro (ela na Austrália e eu na Inglaterra) e ter o direito de vestir qualquer coisa que deseja sem ter que ficar ouvindo coisas ridículas ou se sentindo um pedaço de carne. 


Já ouvi de uma mulher tão enganada sobre si mesma dizer que quando está se sentindo feia, passa por uma obra pra melhorar a moral. Eu sei que é brincadeira, mas, como disse, não tem graça pra mim. Os peões e os homens que mexem com mulheres na rua não estão fazendo nenhum elogio nem estão deliciados com a beldade das garotas que passam. Eles estão repetindo um rito cultural (não creio que seja biológico, mas acho que nenhum primata faz isso e certamente não acho evolucional) de afirmação de sua masculinidade macho-latina. Se passar um cabrito de salto alto ou vaca peituda de sutiã de renda, vai ouvir: "Gata, me chama de calcinha fio dental e deixa eu apertar sua bunda"...

http://www.facebook.com/CantadasdiPedreiro?fref=ts

Algumas são muito engraçadas até, mas na piada, não quando um cara fala isso na rua pra mim. E como argumentou minha amiga que morou na Austrália, após uma repetição de cantadas de um peão: "meu filho, isso já fez efeito alguma vez, algum dos dias que você falou isso pra mim, eu te dei alguma coisa? Nunca funcionou, porque você continua tentando?". Porque ele nada mais quer que ser um gibão, gritando em cima da árvore até que uma das fêmea se irrite a ponto de calar a boca dele com sexo...



Mas essa lorotada toda não é pra falar mal dos peões e outras mulas que praticam essa requintada arte de ofensa. É pra ficar exasperada com a mulherada que acha isso normal e, macacos me mordam, bacana!

É aí que entram as princesas (!). Sei que a pergunta do meu amigo não pretendia gerar nenhuma comoção desse nível, mas é aquela história... vai mexer com quem tá quieto. O que acho da pergunta é que ela está propondo uma reflexão interessante, só que talvez esteja mal formulada.

As princesas da Disney - estou considerando as clássicas: Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida - não estão procurando namorados para resolver seus problemas, uma delas só descobre o tal Príncipe Encantado depois de cem anos dormindo. Outra também só é desencantada por um beijo de um total desconhecido. Somente a Cinderela escapa pois intenções de conhecer o Príncipe.

No geral, os problemas das princesas são causados por outras mulheres (mais velhas e invejosas da beleza e juventude) e pela ausência ou displicência de figuras paternas ou irmãos. São verdadeiras coitadas. E a questão que me incomodou é que se elas estivessem 'procurando namorado' para resolver os problemas, como a Cinderela, estaria tudo melhor. Porque essa é uma atitude, ao menos. O que meu amigo levanta é que resolver seus problemas achando um homem não seria muito digno ou louvável.

Pois eu acho Cinderela a mais bem colocada dessas três, porque ela é a única a procurar ajuda, a ter uma postura ativa. E daí que seja através de um príncipe? As duas outras princesas são tão reféns de sua própria sina que elas precisam ser encontradas por um homem que literalmente as desperte. Esses homens são a única coisa capaz de lhes dar vida. Elas não são sujeitos em suas próprias estórias, são objetos, de inveja, de adoração, de desejo. Mas a elas nada disso é permitido. Nem agir nem desejar. 

É bom lembrar que essas estórias não são da Disney, mas dos contos de fadas que vem sendo contados desde o Romantismo, pelo menos. Tempos em que a proteção masculina era altamente desejada e cuja visão patriarcal da feminilidade que vem se repetindo desde então, principalmente através da cultura. Foi primeiramente nos contos de fadas que aprendemos esse modelo de mulher objeto, que se prestam somente ao olhar e o desejo masculino, sem que possuam nada mais per si.

O problema dessas princesas não é procurar homem, é NÃO procurar nada. É serem vítimas de suas estórias até que um homem que as deseje, quando então elas passam a existir (mas a estória acaba aí, não é?).

Encontrar o Príncipe Encantado talvez não seja a ideia mais vanguardista hoje, 50 anos pós-feminismo, mais ainda sim é melhor que o arquétipo anterior. E por agora temos as novas princesas, Fiona, Mulan, Tiana, que ainda encontram o Príncipe Encantado e vivem felizes, mas mesmo repetindo esse padrão, elas invertem a atitude. Elas resolvem seus próprios problemas, em alguns casos, os seus e os do príncipe também.

É uma esperança para que as mulheres se percebam de outras formas e para que entendam que, mesmo se quiserem procurar um príncipe, não precisam aturar cantadas e frases de mal gosto de sapos verruguentos na rua.



Ps: webcams no próximo post...




De Profundis


Eu cavo
Tu cavas
Ele cava
Nós cavamos
Vós cavais
Eles cavam




Pode não ser bonito, mas é profundo...

sábado, 4 de maio de 2013

sábado, 27 de abril de 2013

Las Conversations Imaginaires (pero no mucho)


  • B. "Sua burricida..."
  • L. "Se eu fosse, cê num tava mais aí!"

  • (no facebook)
  • B. "(...) nesse frio? ta precisando de animo...
  • L. "Ânimo ou animo?
  • B. "O que é um acento pra quem tá deitado?"

  • M. "Seu pai inventou de ter uns peixes agora... como chama mesmo quem mexe com isso?"
  • L. "Psicultor?"
  • M. "Não, ele num vai criar, só pra ficar admirando..."
  • L. "Ah, psicólogo".

  • L. (na rua, sob a sacada)"Bê, seu corno, jogue suas tranças!"
  • B. (da sacada) "Hoje não, tô de bobs..."

  • L. (aos 13 anos de idade) "H., cê tá me ouvido?"
  • H. (aos 11 anos, emburradíssima) "Não!"