segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Nota do autor

"Fui tradutor durante toda a minha vida adulta e considero a tradução o maior problema e o maior desafio da literatura. A 'outra' língua para a qual a obra do autor deve ser vertida não tolera obscuridade, trocadilhos, falsos brilhos linguísticos. Ensina o autor a tratar dos fatos ao invés de sua interpretação e a deixar que os acontecimentos falem por si. A 'outra' língua é muitas vezes o espelho em que temos a oportunidade de nos ver refletidos com todas as nossas imperfeições e, se possível, de corrigir algumas de nossas falhas".


Isaac Bashevis Singer

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Visconde

Fosse eu um visconde, assim iniciaria essa missiva:

Ah Senhora de meu Destino,
Quantos o Amor faz padecer!
E eu que, nem morto,
Dele posso me desfazer!

Tal sorumbática Verdade,
Ser a Morte tão solitária companhia,
Jamais se me havia vislumbrado
Nem na hora mais negra da Noite Vazia.

Mas não sou visconde verdadeiro ou sequer sou “de verdade”. Então como me atreveria a cantar trovas de amor e elegias a damas de amor inalcançável ? Não que tal dama não exista, ela sim existe. Vós, Marquesa, existis com todos os méritos e prerrogativas dos vivos. Já eu, eu estou morto. Ou nunca cheguei a viver, se ouvirmos os puristas.

Vivi. Para o cânone literário, para os tratados e os textos clássicos. Me agarrei a eles como o náufrago ao tronco... mas não, não posso me comparar a Crusoé, bem entendido que seria mais uma canhestra caricatura de Quixote, este sim, uma grande caricatura. Veja que ensimesmada figura tenho sido ou fui. E tal qual o cavaleiro da triste figura, mesmo sendo um homem de livros, presenciei as mais excitantes aventuras. Combati piratas e bandidos, me perdi no Palácio de Minos fugindo de seu monstruoso morador. Conheci Platão e Aristóteles, pelo amor dos deuses! Mas nenhuma dessas aventuras se qualifica como a verdadeira grande aventura - o amor.

Sendo um tanto quanto dantesco, pujante Marquesa, devo dizer-vos que nem os mais sublimes versos nem a mais refinada prosa podem consolar-me neste limbo onde me encontro. Somente vossa presença poderia me restituir a não-existência. Entretanto, aqui estou, como o mais miserável dos pecadores, prestes a adentrar os círculos do inferno e sem um Virgílio sequer para me guiar! E mesmo que houvesse um poeta para mim, certamente eu não seria tão afortunado que vossa excelência consentisse em ser minha Beatriz, aquela a abrir os portões celestiais para a triunfante entrada deste ser vegetal.

Sei que vosso sapiente coração não me daria permissão ou remissão. De que valem agora os falsos títulos nobiliárquicos? E os imensos e longuíssimos livros que me soterraram? Tudo o que este verme das letras sempre quis, mas nunca teve a coragem de mostrar foi o desejo de se libertar, um desejo endereçado a vossa pessoa.

A morte não é castigo, pois morto já era. Apenas repito-me. A pena deste purgatório é não poder vê-la com estes fracos olhos; é não mais poder estar presente quando a famosa torneira de asneiras se abre e a Senhora ilumina o mundo com toda a sua verve corajosa e a todos espanta com as mais brilhantes declarações. É não mais ouvir de sua graciosa boca costurada em cetim: “onde está aquele pedaço de espiga velha?”, tão fidedigna exaltação que me faltam palavras para respondê-la.

Mas, palavras tivesse, célebre Boneca, seriam em vosso louvor. Só peço aos deuses que minha ausência seja em algum momento notada por vossa onisciente sabedoria e que, louvada seja, mande por mim procurar neste cocho velho e mal cheiroso, onde um estúpido ruminante tem digerido meu frágil corpo. Caso contrário, fico aqui a desejar ter vivido.

A Bicicleta

O menino queria voltar para casa e precisava da bicicleta da loirinha para isso. Mas a bicicleta não estava muito boa da cabeça, pois já estava bem velhinha. Seus pneus já tinham perdido os cabelos e os dentes da roda já não funcionavam bem. Mesmo assim, ela sabia o quanto era importante para o rapazinho voltar ao seu planeta. Ela ouvia todo o tempo ele dizer “é tê minha casa”. Tinha pena do coitadinho desse menino. Tão feiinho, pensava, deviam ter expulsado ele de casa, talvez até porque ele fosse feiinho mesmo. Compadeceu-se dele. Não estava boa da cabeça, mas isso não queria dizer que gostasse de injustiças. O outro garoto, o irmão da loirinha, o 'seu' garoto já nem sabia mais o que era andar de bicicleta, só pensava em patins e skate, mas não agora. Agora, eles precisavam dela para ajudar o rapazinho.
Quem sabe ela não realizaria seu grande sonho, o de voar? Quem sabe o disco voador não levava ela também? Era uma ótima ideia, ver outros planetas, a via láctea, o Harley. Será que ele a deixaria correr em sua calda? Já não estava mais ligando pra ficar nesse mundo mesmo. Quando se é velho, ninguém mais presta atenção em você. Parece até que é um inútil de um maluco.
Colocaram o é tê em sua cestinha e o seu menino pedalou, pedalou e pedalou. Foi tanta pedalação que a velha bicicleta começou a voar. As outras bicicletas que os acompanhavam também deram um grande salto em direção à lua, mas não conseguiram.
Apenas eu estou voando, pensou, e de repente, a lua saiu do lugar para lhe dar passagem. O seu menino e o é tê já não estavam mais com ela. Seus velhos pneus agora não eram mais de borracha, eram feitos de pó de estrelas e ela não era mais uma velha bicicleta da terra. Era uma cadeira de rodas, uma cadeira com lindas rodas de poeira do universo e era ela mesma um cometa, um cometa que carregava uma galáxia supernova em seu colo e viajava à velocidade de deus em direção a um lugar muito escuro, um lugar que puxava toda luz como o bueiro puxa a água da chuva.
Ela entendeu o que estava acontecendo e percebeu que também ela estava indo para lá, para esse lugar onde as luzes já usadas ficam tão juntas, mas tão juntinhas que acabam virando um só pontinho bem pequenininho. A velha bicicleta ficou muito feliz porque viu que ela ia virar luzinha.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Crianças Voláteis

Essas crianças voláteis.
Meus vampirinhos de gás.
Como não amá-los?
Como não se cansar deles?
Parlando na língua do p,
Parecem pantamas pantoches.
Se o carrossel está bom,
- "Vamos para o escorregador!"
Escorregador, só mais tarde,
- "Vamos andar de trenzinho!"
A brincadeira de roda é a melhor,
Mas não completa o álbum.
É preciso saltar o balanço,
rodar a pipa e empinar o peão.
O que desejam tais anjos?
O que desejam esses anjinhos?
Virar fumacinha e sobrevoar.
as coisas doídas e feias.