quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Visconde

Fosse eu um visconde, assim iniciaria essa missiva:

Ah Senhora de meu Destino,
Quantos o Amor faz padecer!
E eu que, nem morto,
Dele posso me desfazer!

Tal sorumbática Verdade,
Ser a Morte tão solitária companhia,
Jamais se me havia vislumbrado
Nem na hora mais negra da Noite Vazia.

Mas não sou visconde verdadeiro ou sequer sou “de verdade”. Então como me atreveria a cantar trovas de amor e elegias a damas de amor inalcançável ? Não que tal dama não exista, ela sim existe. Vós, Marquesa, existis com todos os méritos e prerrogativas dos vivos. Já eu, eu estou morto. Ou nunca cheguei a viver, se ouvirmos os puristas.

Vivi. Para o cânone literário, para os tratados e os textos clássicos. Me agarrei a eles como o náufrago ao tronco... mas não, não posso me comparar a Crusoé, bem entendido que seria mais uma canhestra caricatura de Quixote, este sim, uma grande caricatura. Veja que ensimesmada figura tenho sido ou fui. E tal qual o cavaleiro da triste figura, mesmo sendo um homem de livros, presenciei as mais excitantes aventuras. Combati piratas e bandidos, me perdi no Palácio de Minos fugindo de seu monstruoso morador. Conheci Platão e Aristóteles, pelo amor dos deuses! Mas nenhuma dessas aventuras se qualifica como a verdadeira grande aventura - o amor.

Sendo um tanto quanto dantesco, pujante Marquesa, devo dizer-vos que nem os mais sublimes versos nem a mais refinada prosa podem consolar-me neste limbo onde me encontro. Somente vossa presença poderia me restituir a não-existência. Entretanto, aqui estou, como o mais miserável dos pecadores, prestes a adentrar os círculos do inferno e sem um Virgílio sequer para me guiar! E mesmo que houvesse um poeta para mim, certamente eu não seria tão afortunado que vossa excelência consentisse em ser minha Beatriz, aquela a abrir os portões celestiais para a triunfante entrada deste ser vegetal.

Sei que vosso sapiente coração não me daria permissão ou remissão. De que valem agora os falsos títulos nobiliárquicos? E os imensos e longuíssimos livros que me soterraram? Tudo o que este verme das letras sempre quis, mas nunca teve a coragem de mostrar foi o desejo de se libertar, um desejo endereçado a vossa pessoa.

A morte não é castigo, pois morto já era. Apenas repito-me. A pena deste purgatório é não poder vê-la com estes fracos olhos; é não mais poder estar presente quando a famosa torneira de asneiras se abre e a Senhora ilumina o mundo com toda a sua verve corajosa e a todos espanta com as mais brilhantes declarações. É não mais ouvir de sua graciosa boca costurada em cetim: “onde está aquele pedaço de espiga velha?”, tão fidedigna exaltação que me faltam palavras para respondê-la.

Mas, palavras tivesse, célebre Boneca, seriam em vosso louvor. Só peço aos deuses que minha ausência seja em algum momento notada por vossa onisciente sabedoria e que, louvada seja, mande por mim procurar neste cocho velho e mal cheiroso, onde um estúpido ruminante tem digerido meu frágil corpo. Caso contrário, fico aqui a desejar ter vivido.

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